Homotheosis e a Arte
Hoje inúmeras pessoas nos Estados Unidos, Europa e Austrália acabaram
por formar seus próprios grupos baseados em Mistérios Pagãos com ênfase
na homossexualidade, se reportando aos antigos cultos de Dionísio,
Príapo, Pan, Eros, Ganimedes, Antinous entre outras divindades do êxtase
e da liberdade sexual. Muitos são os Pagãos gays que se sentem excluídos
com a visão heterossexista de algumas Tradições Pagãs, que
consequentemente transformam o Paganismo em uma religião hetero normativa
e separatista muitas vezes. Por isso, formas de culto alternativas
baseadas numa perspectiva mais pessoal, tornou-se uma solução para os
homens que não se sentem à vontade em ter que encarar o Deus como
princípio máximo heterossexual da masculinidade e do masculino, já que
muitos Pagãos também são homens e não são heterossexuais. O crescimento
de movimentos Pagãos feministas ajudou a incentivar a formação de muitos
outros grupos focados no estudo e prática e de uma espiritualidade
centrada na religiosidade e sexualidade não patriarcal. Estas buscas
resultaram na formação de grupos que reuniram diversas pessoas
previamente marginalizadas socialmente. Os gays, lésbicas e transgêneros
incluem-se nessa tão massacrada categoria da sociedade. Isto representou
um passo importante na tentativa e processo de reverter uma situação de
preconceitos, marginalização e misoginia que perdurou por séculos e que
ainda é alimentada pela sociedade patriarcal machista. O movimento ao
redor da formação de grupos que buscam uma espiritualidade gay distinta
iniciou-se há muitos anos, com os pioneiros da espiritualidade Quer se
juntando em sociedades alternativas com o intuito de explorar suas
conexões com o Divino. Os primeiros registros desses grupos datam da
década de 70. Eu mesmo durante muito tempo de minha vida tive problemas
em me relacionar com a figura do Deus Astado, já que eu era homem como
ele mas não era heteressexual como
expresso na maioria de suas iconografias e mitologias. Ao ter contato com
o Paganismo Queer eu pude perceber que existiam outras formas deencarar a
figura do Deus, que ele representa o masculino em sua totalidade e tudo o
que está contido nesse arquétipo e que ele era, inclusive, a expressão da
homossexualidade tão renegada pelos segmentos tradicionalistas da Arte.
Isso me possibilitou uma nova percepção de espiritualidade e uma cura com
o Sagrado Masculino que, até então, não tinha ocorrido comigo ao usar as
referências mais comuns disponíveis de relação com a figura do Deus. Como
Diânico, me relacionar com o Deus de Chifres sempre foi muito difícil uma
vez que minha Tradição é extremamente orientada para a Deusa. A forma do
Deus apresentada pelo Paganismo Queer tornou esta relação muito mais
fluida e fácil para mim.
O que eu percebi ao longo de todo esse tempo é que, como eu, muitos
praticantes gays do Paganismo moderno percebem as figuras
heteronormativas da Deusa e do Deus como demasiadamente limitadoras. Por
isso, muitas crenças e práticas Pagãs entre os Queers foram
autoconstruídas e/ou ampliadas pelos membros deste movimento. Uma das mais
surpreendentes é a celebração de um Deus patrono dos gays, o Deus Queer.
Este Deus é chamado por muitos outros títulos: Deus Púrpura, Deus Azul,
Aquele que Dança, Rei Flor, Deus Risonho. Em cada um dos seus muitos
aspectos o Deus Queer assume um atributo diferenciado e acredita-se que
sua energia só seja acessada quando ele é invocado pelos gays. Muitos
praticantes tradicionalistas da Arte acham absurda a idéia da criação de
novos Deuses, mas esta prática é fundamento de todas as mitologias do
mundo. Os homens criaram seus Deuses ao longo da história de acordo com
suas necessidades espirituais, emocionais e materiais, assim como criamos
um ideal social ou político elaborado ou simples. Um Deus somente para os
Queers pode ser considerado uma criação mitológica moderna simbólica para
expressar reafirmação espiritual e identidade. Levando em consideração o
tratamento que os gays recebem diariamente por parte da sociedade, o Deus
Queer se transformou em protetor, companheiro e confidente para muitos
que se sentem excluídos da religião e sociedade em função de sua opção
sexual. Ao contrário do que muitos pensam essa figura do Deus não promove
o separatismo, mas a inclusão. Ele é o Deus que conduz o ser ao
reconhecimento do Sagrado dentro de cada um de nós e a aceitação de que o
que é "diferente" é bom, pois promove a diversidade,
pluralidade e multiplicidade e por isso deve ser celebrado e honrado.
Para os Pagãos gays, o Deus Queer é considerado o primeiro reflexo visto
pela Deusa quando ela se mirava no espelho curvo e negro do Universo,
fazendo amor consigo mesma para criar toda a vida. Ele é a própria imagem
da Deusa refletida na luz do êxtase, no momento infinito da Criação.
Tornou-se o seu primeiro amante e é a expressão do amor puro, a alegria
ilimitada e a sexualidade em suas amplas manifestações. Ele representa
não a heterossexualidade ou homossexualidade em si, mas a sexualidade
como o abraço apaixonado do Divino, em cada um de nós e no Universo.
Assim, quando nos ligamos a uma outra pessoa no êxtase do amor, seja numa
relação homossexual ou heterossexual, abraçamos o Divino em nós mesmo, no
outro e no Universo e nos ligamos ao momento infinito da Criação. Esta é
a chave para começar a conexão com o Deus Queer. Sendo assim, Pagãos
homossexuais ou bissexuais o consideram seu patrono, já que ele pode ser
considerado masculino e feminino, amando e se relacionando com ambos. O
Deus Queer é reconhecido em muitas Tradições de Bruxaria e em todas elas
ele está relacionado ao Self Profundo, que é a corporificação do nosso Eu
Divino, por onde emitimos e recebemos energia para trabalhar magia. Daí a
grande importância da reafirmação de nossa sexualidade para a realização
de atos mágicos. Então, para os gays, ele se torna uma figura poderosa
não somente para a reafirmação de nossa espiritualidade, mas para o
despertar de nosso verdadeiro propósito mágico, de nossa verdadeira
magia. Iconograficamente, o Deus Queer é retratado muitas vezes como um
ser andrógino jovem, com seios de mulher e pênis ereto. Em volta de seu
pescoço encontra-se uma serpente e em seu cabelo uma pena de Pavão. O
Pavão é o animal mais sagrado ao Deus Queer e para entendermos isso
podemos recorrer a uma história da Tradição Sufi, o ramo esotérico do
Islamismo que é muito diferente de sua facção ortodoxa, que conservou
muito de suas crenças e filosofia primitiva centrada na Terra e em
antigas crenças pagãs dos povos do deserto:
"Quando a Luz se manifestou e se viu
refletida na vastidão do universo pela primeira vez, como um espelho,
percebeu o seu Self como um pavão com a cauda aberta".
Sendo assim, os olhos da cauda
do pavão são os brilhantes centros de concentração da Luz, simbolizando
as virtudes espirituais irradiadas por Ela. O desdobramento da cauda do
Pavão simboliza o desdobramento cósmico da Luz, seus muitos olhos, sua
onipresença. Muitos dizem que a forma encontrada na cauda do Pavão não
seria os olhos da divindade primordial e sim a própria imagem do Big Bang
no momento da Criação ou o retrato do próprio Universo. Podemos perceber
assim a similaridade entre a história Sufi e o mito da Criação da
Tradição Feri de Bruxaria, onde o Deus Queer, chamado nesta Tradição pelo
nome de Deus Azul, é o primeiro reflexo da própria Deusa:
"... naquele grande movimento, Myria
foi levada embora e enquanto Ela saía da Deusa, tornava-se mais
masculina. Primeiro, Ela tornou-se o Deus Azul, o bondoso e risonho Deus
do Amor".
Eu vejo em tudo isso algo muito mais profundo do que a visão
simplista do separatismo, etiquetar um movimento ou o mundo com títulos e
estereótipos, argumentos muitas vezes usados para acusar aqueles que
lançam novas idéias e interpretações de um contexto ou conceito que
precisa ser revisto pela sociedade. Para mim, o Paganismo Queer dá um
novo sentido à espiritualidade humana, ao passo que a homossexualidade
que foi tão renegada pela humanidade por séculos assume um sentido
espiritual, avança e passa a fazer parte da vida de todas as pessoas em
seu dia a dia como uma expressão sexual perfeitamente normal e sagrada,
quando antes era vista como uma doença que devia ser banida da sociedade.
Para mim isso é a expressão clara da ressacralização do que
verdadeiramente somos. A religião precisa compreender e responder às
necessidades, tanto dos indivíduos quanto das comunidades a quem ela
serve no mundo moderno. Quando uma religião não consegue adaptar sua
estrutura aos avanços naturais do tempo, perde sua autoridade e se
estagna. Isto faz com que seus símbolos deixem de inspirar e fortalecer
seus seguidores, negligenciando suas experiências e marginalizando sua
identidade e valores. Uma religião que não dialoga com sua comunidade se
torna nula e vazia. O que os Pagãos Queer fazem é dar uma resposta a esta
perda de significado espiritual, recriando novas formas de contatar o
Divino que falem às experiências atuais daqueles que sentem e percebem o
Sagrado de forma diferenciada. Isto cria uma tradição espiritual de
poder, ligada àquilo que um dia existiu mas com raízes no presente, com
uma visão abrangente e abertura para as gerações do futuro. Os Pagãos Queer
reconhecem que ser diferente não é motivo algum para vergonha, mas uma
dádiva a ser celebrada, uma aceitação dos desafios e jornadas individuais
de celebração ao Sagrado Masculino que existe no interior de homens que
amam outros homens. O homem gay também deve restaurar os poderes do Deus
que reside dentro de si. Há muito temos sofrido com os preconceitos e
represálias da sociedade, que provocou verdadeiros traumas e problemas de
auto-aceitação e baixa auto-estima. O Paganismo precisa rever muitos de
seus conceitos, devolvendo aos gays os ritos que celebram os seus
Mistérios sagrados, o que inclui transformar os rituais em cerimônias
menos heterossexistas e mais abrangentes, para que todos possam
contemplar a beleza numa religião que celebra e respeita a diversidade. O
Paganismo Queer não fala em limitar a espiritualidade pelo gênero ou pela
preferência sexual. Fala em ampliar os horizontes, dando aos Pagãos ainda
mais opções para enriquecer sua espiritualidade. Não estamos falando aqui
em um Paganismo onde seja suprimida a presença da Deusa. Pelo contrário,
estamos falando da apresentação de um Paganismo que apresente o Deus de
uma maneira diferenciada, como Ele nunca foi apresentado em outros
segmentos da Arte e que considere os arquétipos divinos homossexuais do
Deus como sagrados também.No Paganismo Queer, o Deus é considero um
aspecto da Deusa. Seu poder vêm através Dela e só é possível conhecê-lo
por intermédio Dela. Eu gosto muito do termo Queer para nomear esta nova
forma de espiritualidade. Os precursores deste movimento deram o nome do Queer Paganism (Paganismo Queer) a
este tipo de manifestação Pagã exatamente pelo sentido amplo da palavra:
"QUEER"
- 1. ser fora do padrão, singular,
diferente, o oposto de comum;
2.o contrário de hetero.
A palavra Queer dá margem para várias interpretações, mas ela jamais
é usada de forma depreciativa, uma vez que significa simplesmente o
oposto do comum. O Paganismo Queer pode ser transformador aos Pagãos
gays, pois lhes auxilia a resgatar o verdadeiro significado de sua
sexualidade e identidade. A cultura patriarcal apoiada no poder do
Phallus talvez seja a maior responsável pelos traumas, tão freqüentes em
nossa sociedade, que assolam homens e mulheres pois foi através da ênfase
no poder masculino sobre o feminino, difundida há séculos, que nossa
cultura desenvolveu seus preconceitos. Como um reflexo disso, qualquer
inabilidade para usar o Phallus é vista até hoje pela sociedade e pelo
próprio indivíduo como algo que coloca a masculinidade de um homem em
questão. Como o poder do Phallus é apoiado na descendência, que confere
uma forma de imortalidade e honra, as culturas começaram a desenvolver
seus tabus sociais como por exemplo o repúdio à homossexualidade. O uso
do Phallus não somente para a reprodução passou a ser percebido como
debilidade e falta de caráter, já que poderia pôr em risco a continuidade
da descendência e sua riqueza. Este medo foi acentuado pelos sacerdotes
das religiões patriarcais através da masculinização da divindade criadora
tornando o Phallus, o sexo e todas as fontes de prazer na origem do
pecado e maldição. Assim, passaram a usar este artifício para ganhar
poder sobre os homens e controlá-los, pois se o que dá prazer torna-se um
desejo incontrolável, porém é vergonhoso, transforma-se em uma ferramenta
de controle social ao passo que precisa ser reprimido e proscrito. Cada
paixão ou desejo espontâneo se tornou pecaminoso. Tudo o que era livre
precisava ser destruído, incluindo os desejos sexuais homossexuais. É
hora de exploraremos a ressacralização da homossexualidade através do
entendimento do seu mais sagrado Mistério: a Homotheosis. Este Mistério
ensina que nossos medos e sombras de sermos quem verdadeiramente somos
devem morrer, para que nosso espírito se torne sagrado e seja verdadeiramente
livre e alcance a Totalidade. O propósito de celebrar os Mistérios
Masculinos da homossexualidade novamente é despertar o poder interior do
homem gay, pondo-o em contato direto com o que ele teme ou se envergonha
para que ele possa vencer suas limitações e resgatar seu orgulho, força e
dignidade. Desta forma os gays não se sentirão mais sozinhos ou
aterrorizados na jornada de seu autoconhecimento sobre o que
verdadeiramente é ser homem. Descobrirão que se tornar um homem de
verdade não está ligado a sua preferência sexual, virilidade ou
fragilidade mas sim a sua maturidade emocional e espiritual. Tornar-se
homem inclui vencer os limites, barreiras e tabus que o impedem de
expressar-se como ele verdadeiramente é, sem máscaras. O Paganismo Queer
vai muito além de uma briga de sexos ou identidade sexual, como alguns
podem alegar. Seu verdadeiro significado está em penetrar nos Mistérios
do Deus, que também tem sua face gay, que ama e aceita TODOS os seus
filhos como eles são e que conhece que a autêntica masculinidade não está
centrada em seu Phallus, mas em seu coração. Se vamos conhecer isso
através da Deusa ou do Deus Queer, não importa. O importante é obter esta
transformação. Quando isso acontecer, seremos verdadeiramente livres!
(Fonte: Wicca para todos, de Claudiney Prieto)
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